quinta-feira, 7 de novembro de 2013

O espelho



Outro dia eu cheguei cedo no Shopping Rio Sul para dar entrada no passaporte da Mariah. Saímos da escola e uma conjunção de fatores místicos proporcionou um trânsito pesado, entretanto rápido. Decidimos aguardar numa lanchonete localizada próximo ao teatro que parece ter sido improvisado na garagem. Era realmente cedo para a peça que seria encenada naquele espaço diferente, mas de repente saiu ninguém menos que o Miele.



Miele é aquilo que chamamos de lenda viva do universo artístico brasileiro. A mais antiga lembrança que eu tenho dele atuando é numa versão da Praça é Nossa que antigamente passava na rede Globo com o nome Praça da Alegria. Para Mariah, contudo, Miele se resume ao Mágico de Oz do teatro.

Da Praça da Alegria, o personagem que eu mais gostava era a Velha Surda, mas eu lembro bem do Zé Bonitinho e a Kate Lyra, uma loura norte-americana linda de morrer que repetia o bordão com um sotaque carregadíssimo: “Brasileiro é tão bonzinho!”. Os demais eu apaguei da memória, talvez desinteressantes para uma criança.


Há algum tempo eu li uma entrevista publicada no blog no Agnaldo Silva. Eu não costumo ler este blog, mas me indicaram uma publicação e eu acabei lendo textos mais antigos e caí na entrevista como o Jorge Loredo, o Zé Bonitinho. Mais que uma entrevista, o texto era uma homenagem a Loredo.

http://asdigital.tv.br/portal/?p=5818



Como Miele, a sombra de Loredo tangenciou a minha vida de alguma forma: sua ex-mulher, Ruth Lima, foi professora de balé da minha esposa, mas quando a Luiza aprendeu os primeiros passos eles já estavam separados e à época, nos anos 70, era muito constrangedor tocar no tema divórcio em qualquer situação. Claro que a minha sogra e as outras mães sussurravam o entre elas, entre um Plié e um Pas de Deux, que Ruth Lima era separada do Zé Bonitinho.

Na entrevista, Loredo fala dos seus personagens e eu interpretei que o predileto era o Mendigo, talvez por estar um pouco entediado por tantos anos interpretando o Perigote das Mulheres. O Mendigo é um personagem instigante: um homem sujo, usando cartola e uma casaca em frangalhos falando de riqueza e da sua amizade e influência com ricos e poderosos. Pode ser um louco, pode ser um arruinado ou pode ser simplesmente uma piada, um tipo surreal.

A personagem Zé Bonitinho é um fato curioso por ser inspirado em alguém que realmente existiu e que morava na Tijuca, o bairro onde moro há mais de dez anos. Um homem horrível, com bigode anos 1950 e um topete enorme que deixa as mulheres apaixonadas ao olhar para o seu rosto. Vaidoso, Zé Bonitinho sempre ajeita o cabelo sacando de dentro do paletó um pente gigantesco. O chato não é ser bonito; o chato é ser gostoso.

Mendigo e Zé Bonitinho, na essência, brincam com o mesmo tema, muito comum no humor universal: a diferença entre o que pensamos que somos e o que realmente somos. Em momentos da nossa vida nossos espelhos peculiares refletem seres especiais, belos, afortunados, abençoados, predestinados para o sucesso e indispensáveis quando, no fundo, somos bem banais e substituíveis. Este mal não é exclusividade da geração Y.



Talvez o segredo da vida feliz seja quebrar o espelho, se conformar em pertencer a um mundo de bilhões de pessoas absolutamente comuns e sem nada de especial, condenados a uma vida que não vai entrar no livro dos recordes, nem ganhará um prêmio Nobel, cuja história nunca despertará a cobiça dos biógrafos e por isto jamais pertenceremos ao grupo Procure Saber, mas que pode ser muito interessante para nós e para quem amamos.

(Se decidir quebrar o espelho, não se esqueça de embrulhar os cacos com bastante jornal antes de colocar na lixeira).

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