Outro dia eu cheguei cedo no Shopping Rio Sul para dar entrada no
passaporte da Mariah. Saímos da escola e uma conjunção de fatores místicos proporcionou
um trânsito pesado, entretanto rápido. Decidimos aguardar numa lanchonete
localizada próximo ao teatro que parece ter sido improvisado na garagem. Era realmente
cedo para a peça que seria encenada naquele espaço diferente, mas de repente
saiu ninguém menos que o Miele.
Miele é aquilo que chamamos de lenda viva do universo artístico
brasileiro. A mais antiga lembrança que eu tenho dele atuando é numa versão da Praça é Nossa que antigamente passava na
rede Globo com o nome Praça da Alegria.
Para Mariah, contudo, Miele se resume ao Mágico de Oz do teatro.
Da Praça da Alegria, o personagem que eu mais gostava era a Velha Surda, mas eu lembro bem do Zé Bonitinho e a Kate Lyra, uma loura
norte-americana linda de morrer que repetia o bordão com um sotaque carregadíssimo:
“Brasileiro é tão bonzinho!”. Os demais eu apaguei da memória, talvez desinteressantes
para uma criança.
Há algum tempo eu li uma entrevista publicada no blog no
Agnaldo Silva. Eu não costumo ler este blog, mas me indicaram uma publicação e
eu acabei lendo textos mais antigos e caí na entrevista como o Jorge Loredo, o
Zé Bonitinho. Mais que uma entrevista, o texto era uma homenagem a Loredo.
http://asdigital.tv.br/portal/?p=5818
Como Miele, a sombra de Loredo tangenciou a minha vida de
alguma forma: sua ex-mulher, Ruth Lima, foi professora de balé da minha esposa,
mas quando a Luiza aprendeu os primeiros passos eles já estavam separados e à época,
nos anos 70, era muito constrangedor tocar no tema divórcio em qualquer situação.
Claro que a minha sogra e as outras mães sussurravam o entre elas, entre um Plié e um Pas de Deux, que Ruth Lima era separada do Zé Bonitinho.
Na entrevista, Loredo fala dos seus personagens e eu
interpretei que o predileto era o Mendigo,
talvez por estar um pouco entediado por tantos anos interpretando o Perigote das Mulheres. O Mendigo é um
personagem instigante: um homem sujo, usando cartola e uma casaca em frangalhos
falando de riqueza e da sua amizade e influência com ricos e poderosos. Pode
ser um louco, pode ser um arruinado ou pode ser simplesmente uma piada, um tipo
surreal.
A personagem Zé Bonitinho é um fato curioso por ser
inspirado em alguém que realmente existiu e que morava na Tijuca, o bairro onde
moro há mais de dez anos. Um homem horrível, com bigode anos 1950 e um topete
enorme que deixa as mulheres apaixonadas ao olhar para o seu rosto. Vaidoso, Zé
Bonitinho sempre ajeita o cabelo sacando de dentro do paletó um pente gigantesco. O
chato não é ser bonito; o chato é ser gostoso.
Mendigo e Zé Bonitinho, na essência, brincam com o mesmo
tema, muito comum no humor universal: a diferença entre o que pensamos que somos
e o que realmente somos. Em momentos da nossa vida nossos espelhos peculiares
refletem seres especiais, belos, afortunados, abençoados, predestinados para o
sucesso e indispensáveis quando, no fundo, somos bem banais e substituíveis. Este
mal não é exclusividade da geração Y.
Talvez o segredo da vida feliz seja quebrar o espelho, se
conformar em pertencer a um mundo de bilhões de pessoas absolutamente comuns e
sem nada de especial, condenados a uma vida que não vai entrar no livro dos
recordes, nem ganhará um prêmio Nobel, cuja história nunca despertará a cobiça
dos biógrafos e por isto jamais pertenceremos ao grupo Procure Saber, mas que pode ser muito interessante para nós e para
quem amamos.
(Se decidir quebrar o espelho, não se esqueça de embrulhar
os cacos com bastante jornal antes de colocar na lixeira).
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