sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Aeroportos



Existirá um lindo dia em que os cientistas descobrirão que as regiões do cérebro responsáveis pela cleptomania e pelo colecionismo são incrivelmente próximas, com uma grande interseção de neurônios. Eu imagino que mais de sessenta por cento dos meus neurônios colecionistas exercem dupla jornada e desejam roubar por puro prazer. 



Toda a vez que eu sento no banco do avião eu tenho dois pensamentos. O primeiro é que se existe uma coisa que não muda nesta vida é o fecho de cinto de segurança de aeronave. O dia que eu descobrir como investir na Bolsa de Valores de Nova Iorque a minha primeira compra serão as ações da empresa que fabrica os fechos dos cintos de segurança da Boeing. Deve ser o melhor negócio do mundo: pouca concorrência, nenhuma evolução tecnológica, mercado em constante crescimento, tudo de bom. Esta empresa deve ser o que os investidores chamam de "vaca leiteira", por provavelmente pagar generosos dividendos.



O segundo pensamento é que eu poderia roubar o cartão de segurança da aeronave e iniciar uma próspera coleção. É uma ideia fixa, maior até que o meu medo de voar e de alguém ocupar o assento do meio. Meus neurônios ficam excitadíssimos com este pensamento atordoante de um criminoso em potencial.

Por pura sorte o anjinho do meu ombro direito nunca permitiu que o diabinho do ombro esquerdo vencesse este conflito, convencendo-me a praticar o furto. Provocador frequente e maldito, o diabinho lembra que, se eu tivesse cedido desde o primeiro voo, teria peças hoje raras como o do MD-11 da Varig ou de um avião da Transbrasil que valeriam um bom dinheiro nos sites de leilões ou, aumentando a coleção e esperando o tempo passar e os crimes prescreverem, fazer uma exposição numa galeria de arte ou até mesmo criar um museu. Existe o museu do Neon e o museu do pinball. Por que não um museu do cartão de segurança?



O anjinho recomenda sossegar, aproveitar a viagem e pegar a revista da companhia aérea para esquecer a compulsão por surrupiar. Fico olhando as pessoas. São sempre os mesmos tipos, independe do destino e da companhia aérea: a velhinha simpática, o casal de férias, uma mãe com um bebê no colo inquieto, uma gostosa com decote e calcinha marcando a calça de tecido fino, o gordo - eu -, o homem de terno, a mulher com uma mala enorme que deveria ser despachada, a comissária com cara de tédio, o marombado que chega por último e viola as leis da física socando a mochila enorme no bagageiro e a adolescente hipnotizada pelo celular.

Pego a revista, a capa é linda e mostra um país exótico. No conteúdo, toneladas de propaganda de produtos sofisticados, churrascarias e hotéis em São Paulo com diária de 170 reais no final de semana. Descubro que uma pessoa que viaja de avião como eu tem um nível econômico bastante elevado e, segundo as propagandas da revista, merece usar perfumes Chanel, relógios Breitling e blusas Michael Kors. Não existem anúncios de produtos populares com que estão disponíveis nas Lojas Americanas. No Brasil ainda resiste a imagem que somente os abundantemente ricos viajam de avião, embora o Galeão já tenha destruído todo o glamour.



Aeroportos brasileiros e revistas de bordo de empresas de aviação representam os maiores símbolos e as maiores provas da existência de uma oculta exploração dos mais ricos. Da exploração do pobre e da classe média todo mundo sabe, mas poucos comentam da exploração dos ricos.

A TV de plasma, quando surgiu, custava uma fortuna, somente os mais ricos podiam comprar. Pelo menos no Brasil. E os ricos, juntos com alguns traficantes de drogas dos morros cariocas, compraram. A indústria se aproveita do fetiche pelo ter, do desejo de status, da vontade de causar inveja, desejos e vaidades para meter a mão no bolso dos mais ricos com um argumento pífio: o valor dos lançamentos seria propositalmente alto e serve para pagar os investimentos em pesquisa e em novos equipamentos, porém este argumento só reforça a tese que os ricos são explorados: por que somente os mais ricos devem bancar maquinário novo e um conjunto de pesquisas se todos se beneficiam? O mesmo se aplica a itens de luxo: a alta costura sustenta os melhores estilistas que tem linhas populares mais baratas e a operadora de TV por assinatura tem um plano popular para favelas, embora o custo do serviço seja basicamente o mesmo do asfalto.

Remédios também são feitos para explorar os mais ricos pois o preço despenca depois que a patente vence e patente existe para, mais uma vez, remunerar as pesquisas e os equipamentos de produção, tornando viável e lucrativa a indústria farmacêutica. Claro que se eu comentar do preço do Viagra provavelmente serei rotulado pelos meus inimigos de reclamão - o que é verdade - e sem muita virilitade - o que é uma absoluta mentira. Pode-se argumentar que o rico está na verdade sendo privilegiado por ter acesso ao remédio antes do pobre, mas na verdade é o oposto: se as patentes durassem mais tempo os custos seriam diluídos e todos os doentes pagariam um preço mais justo e seriam beneficiados antes pelos avanços da medicina.

As pessoas não ligam, não querem nem saber, não é com o bolso delas e dane-se que o primo consumista que comprou a TV de plasma por uma fortuna assim que ela foi lançada no mercado e ficou com um rombo na conta de eletricidade e a imagem borrada meses depois.

Somos programados para não perceber a exploração dos mais ricos. Ignoramos até o dia que  pisamos no território dos ricos, o aeroporto, e descobrimos que um prato com um pouco de purê de batatas e um bife à parmegiana visivelmente descongelado no microondas, sem sabor, sem beleza, sem nutrição, sem valor, sem volume e sem quantidade pode custar mais de quarenta e cinco reais.

Esqueceram de avisar aos restaurantes dos aeroportos que as classe média e baixa hoje viajam de avião. Se eu contar que a loja mais barata que vendia a boneca da Ariel da coleção Animators’ ficava no Aeroporto de Orlando alguém acreditará?


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