quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Humilhações

Ontem foi uma moradora de Duque de Caxias fazer faxina na minha casa. Como eu tinha um compromisso fora do meu local de trabalho, saí um pouco mais tarde e tive a oportunidade de conhecê-la brevemente. Estamos fazendo um test-drive porque procuramos uma empregada doméstica para assinar a carteira, mas ainda não encontramos uma que se enquadrasse bem nas nossas expectativas. Bem, na verdade encontramos, mas ela está empregada e relutante em sair.

Ao chegar em casa eu peguei as impressões que a minha esposa teve da profissional. Em algum momento da conversa Luiza relatou que, numa das residências em que esta senhora trabalhou, uma patroa jogou um pano de chão sujo no seu rosto.

Tratar os mais fracos e humildes desta forma indica bem o caráter de uma pessoa. Ainda existe muita cultura de senzala no relacionamento entre patroas e domésticas, algo que nunca me chamou muito a atenção. Descobri que só sendo negro para saber o que o negro sofre. O mesmo é válido para os gays, gordos e empregadas domésticas.

Poucos amigos meus sabem que eu sou neto de uma empregada doméstica. Acho a história de minha avó chocante e interessante, mas eu não lembro de ela relatar maus tratos e humilhações ( o que não quer dizer que ela não sofreu ).



É comum, nos jornais, compararem a atual crise iniciada em 2008 com a crise de 1929. Em breve teremos vários Newtinhos nascendo por aí. Eu explico: a minha avó materna era colona de uma fazenda no interior de Vassouras, região produtora da café na época. Os livros de história contam que a cotação do café despencou com a crise de 1929 e a situação financeira da fazenda ficou bastante difícil. Sobrou para a família da dona Dulce pagar parte do pato e sair da fazenda em direção ao Rio de Janeiro. Sem esta ajuda do cruel destino, a dona Dalva jamais teria conhecido o meu pai.




Por volta de 1931, quando a minha mãe estava com uns 5 anos, a minha avó migrou para a casa de uma irmã em Duque de Caxias, na região metropolitana do Rio de Janeiro. O meu avô saiu de Vassouras antes, tentando sem sucesso a sorte na capital, e desapareceu. Anos depois, quando o Dalton, meu irmão no. 4, nasceu, uma lavadeira que apareceu para ajudar a minha mãe com as fraldas de pano disse que sonhou com o meu avô. Ela explicou que o sonho a deixou atordoada e que o meu avô tinha se tornado alcoólatra, foi atropelado por um caminhão de uma cervejaria e morreu, sendo em seguida enterrado como indigente. Ainda no sonho, o meu avô pedia perdão e orações.


Verdade ou ficção, a minha mãe sempre lembrava desta senhora lavadeira. Disse que passou a acreditar nela no dia anterior, quando relatou um outro sonho com a família da minha avó e falou o nome de vários tios e tias e esta senhora certamente não conhecia a família da minha avó.

Dona Dulce migrou para o Rio de Janeiro com a minha mãe e o meu tio. Imagine a barra de ser abandonada pelo marido e sair de uma fazenda para uma cidade hostil e sem nenhuma qualificação nos anos 30 e ainda com duas crianças com menos de 10 anos. Só lhe restou o trabalho como empregada doméstica. Pelo jeito trabalhava bem e tinha virtudes, pois um conceituado  economista da primeira metade do século XX a contratou para cuidar da casa da amante e no enterro da minha avó os filhos da última patroa que ela ajudou a criar surpreendentemente apareceam, numa demonstração de gratidão maravilhosa. Eram pessoas que eu só conhecia de nome, pelas boas lembranças que a minha avó tinha da família e pela saudade que sentia dos pequenos que cuidou como se fosse a mãe.

Suas roupas mostravam que não eram do nosso mundo, afinal sair da Urca para um enterro em Inhaúma só com teletransporte. O Rio de Janeiro é tão grande que chega a ser cruel. Falam que a cidade é linda, mas eu sempre vi a cidade pelo meu cotidiano de subúrbio e baixada fluminense e a perspectiva de quem observa a cidade por este ângulo é péssima: muita construção, mas pouca arquitetura, muito cimento, mas pouca árvore. O Rio de Janeiro é feio para diabo.

A Carla era linda de levantar os defuntos das capelas vizinhas e o Luís Felipe era bem apessoado com o seu rosto de engenheiro. Acho que o pai deles também foi e consolou a minha mãe. "Ela cuidou dos meus filhos até o momento necessário", teria dito, segundo relatos de mamãe. Nesta última família a minha avó já estava com uma certa idade e foi naturalmente deslocada para cuidar das crianças. Uma outra empregada fazia o serviço mais pesado. Claro que o temperamento da minha avó não melhorou e as histórias de brigas entre as duas empregadas viraram clássicas anedotas no lar dos meus pais.


Fico imaginando quantos filhos de patroa foram nos enterros das babás. Provavelmente é um evento raro. Eu entendo que a profissionalização e os questionamentos na justiça mudaram muito o perfil da profissão de trabalhador doméstico. O carinho que raramente se via das patroas com as profissionais deve desaparecer, mas ontem constatei que a humilhação na senzala continua bem forte.

Nenhum comentário:

Postar um comentário